Jura e seu companheiro de aventuras na Lagoa do Taquaral, em Campinas.
O sorriso constante de orelha a orelha revela uma quantidade razoável de intervenções ortodônticas, onde peças de metal e amálgama convivem em harmonia com o branco dos esmaltes dos dentes. Tal branco contrasta com a pele morena de um baiano, cuja face de alegria é traduzida em cada palavra articulada pelos pulmões e cordas vocais. A voz e suas características, suave e impostada, levemente rouca e com o sotaque nativo, me indicam uma deliciosa conversa sobre conquistas, superação e incontáveis alegrias.
Esse é Juracy Monteiro dos Santos, um negro de 42 anos e gênese do Quilombo de Parateca, um refúgio de ex-escravos da época colonialista do Brasil, localizado no município de Malhada, Bahia, na região do Rio São Francisco. Desde lá, as vinte e oito horas de ônibus, com paradas em Guanambi e Janaúba para a chegada na Rodoviária do Tietê, vão-se 21 anos. Deixados para trás, Mainha e Painho, apelidos carinhosos para Urana Rita dos Santos e Jaime Monteiro da Silva, além de mais vinte e um irmãos, trazem saudades e discretas lágrimas quando estes visitam, freqüentemente, o consciente do meu entrevistado.
Da meia vida já vivida aqui entre Hortolândia e Campinas, Juracy, como se encenasse o “milagre dos pães” descrito na bíblia, multiplica-se em muitos. Hoje ele é o jardineiro de uma grande universidade. Um trabalhador braçal que encontra no suor e na força física o ganha-pão da família, composta por Wesley, de 16, Douglas, de 15, e de sua rainha, Nilza Moreira da Silva. Hoje ele também é o aspirante de educador físico, que sacrifica as horas de descanso e integração com a prole para longas horas de estudo no período noturno. Mais ainda, hoje ele é o criador do projeto Choca (Criança Hoje, Cidadão Amanhã) que, com atividades culturais de dança, esportes e leitura, integra e sociabiliza crianças menos favorecidas de seu bairro e proximidades, em Hortolândia.
Para toda essa vida em um só, as poucas 3 horas de sono diárias contradizem a ciência, e são, inexplicavelmente, suficientes para o dia-a-dia do baiano. Mas, não satisfeito já com os muitos Juracys que criou, todos muito semelhantes a outros brasileiros, graças à triste realidade do país, ele criou mais um Juracy. O Jura do Pote, e tudo por causa de uma melancia.
Em suas idas e vindas de uma feira para comprar produtos frescos em Hortolândia, Juracy deparou-se com o dilema do excesso de compras, dentre elas uma avantajada e pesada fruta de casca verde clara e escura de conteúdo avermelhado e saboroso. Sem pestanejar, o filho de Mainha Urana equilibrou a melancia na cabeça, experiente das muitas cabaças e latas d’água já conduzidas no Quilombo, e seguiu viagem. Atenta a isso, a população fez do baiano a atração, o mico, a zombaria da feira. Revoltado com o fato, nasceu daí uma grande idéia de um dos homens mais dignos que já conheci. Nasceu o Jura do Pote, o atleta artista que mais atiça a curiosidade das pessoas nas provas de corrida Integração. Mas para que raios um homem corre com um pote na cabeça?
A explicação é simples. O pote tornou-se para Jura o símbolo máximo de todas as dificuldades, superações, conquistas, tristezas e, principalmente, alegrias. O mais recente, de formato ovalado e caracterizado com inúmeras cores que percorrem os profundos vincos do molde de barro, assemelhando-se a desenhos indígenas, foi observado e pesado por mim durante nossa conversa, e tinha exatos 6 quilos. Segurei-o e, após algum tempo com ele nas mãos, minha força foi vencida pela dor. Nem imagino então correr dez, quinze, vinte e um quilômetros de uma meia-maratona com o pote na cabeça. Mas Jura o faz, numa mistura de equilíbrio, concentração e força de vontade. E esse é apenas o peso físico do artefato. Ainda não descrevi o peso espiritual de tão significativa peça.
“Dentro do pote eu carrego todos os meus ancestrais. Toda a minha adolescência, minha infância, as pessoas que me colocaram no mundo. Então eu os reverencio, porque tenho certeza, estejam onde eles estiverem, eles me vêem com o pote na cabeça. E isso me traz uma energia muito boa” (nesse instante, um leve tapa de Jura na perna deste repórter demonstrava a exaltação e a alegria ao comentar de seu companheiro de barro).
Ainda segundo o baiano, o pote pode ter, simultaneamente, o peso de uma leve pena, “quando eu coloco o pote na cabeça, eu só consigo ver as pessoas rindo”, ou de um denso fardo, “quando eu não consigo, depois de 17 anos [da criação do personagem Jura do Pote], provocar mudança na cabeça de algumas pessoas, e elas continuam a olhar de uma forma preconceituosa”.
Em duas voltas rápidas pela Lagoa do Taquaral em Campinas, durante o decorrer da entrevista, percebo que estamos sendo observados a cada passo. Nós não, o Jura e seu pote. Sinto na pele, dessa forma, todo o significado do peso pena do pote (e o único que realmente tem valor para a vida), revelado nas corridas e passeios de Jura pela cidade. As crianças admiram-se. Os adultos questionam o motivo. Ele apenas sorri. Agora entendi, e tenho minha conclusão.
Mais do que tudo descrito e visto, tenho certeza que o pote pesa tanto quanto o coração do ex-quilombola. Jura do Pote é uma alma que se destaca e brilha entre muitas. De sua alegria e suor, brotam centenas de sorrisos. Tais expressões faciais provêm de orgulhosos rebentos, crianças e adultos, com laços de sangue ou de carinho, que tem a honra de passar, nem que por um momento, ou uma fração de segundo apenas, pelo caminho do filho de Jaime e Urana, pelos ensinamentos do Painho do Projeto Choca, pelos belos jardins do profissional Juracy Monteiro, pelas notas do estudante RA número 07405301, pelo maluco da melancia na cabeça da feira. Com seus poucos 1,65 metro de altura, Jura encosta a cabeça nas nuvens, quando seu pote desafia a gravidade e as coisas ruins da vida.